Imagem publicada – fotografia colorida que traz quatro crianças em fila, vestidas com uniforme azul, na escola. Há dois meninos e duas meninas nesta foto feita em 2007, na Síria, estudantes que formam fila para entrar em sua sala de aula. Ao centro da foto, entre duas crianças sem deficiências (?) está um menino que se apoia em suas improvisadas bengalas ou muletas. Será que estas outras crianças ainda estão vivas, hoje, lá na Síria? E SERÁ QUE ALGUMA DELAS NÃO SOFREU NENHUMA FORMA DE VIOLÊNCIA NESSA GUERRA POR LÁ?
“Em algum lugar, alguém está dizendo a um menino que ele não pode brincar porque não consegue andar; a uma menina que ela não pode aprender porque não consegue enxergar. esse menino merece uma oportunidade para brincar. e todos nós ganhamos quando essa menina, e todas as crianças, conseguem ler, aprender e contribuir. o caminho a percorrer será desafiador. Mas crianças não aceitam limites desnecessários. nós também não deveríamos aceitar”. Anthony Lake Diretor executivo do Unicef.
Há vários anos venho publicando e difundindo a necessidade de uma séria discussão sobre as violências, principalmente as sexuais, cometidas contra crianças e jovens com deficiência no Brasil.
Ontem o UNICEF(Fundo das Nações Unidas para a Infância) lançou, após uma séria pesquisa, um Relatório da Situação Mundial da Infância. Já o difundi e espalhei por todos os espaços em redes sociais.
Urgentemente precisamos que muitos saibam de seu conteúdo, principalmente a solicitação de “vermos primeiro a criança, para depois a reconhecermos como uma pessoa com deficiência”.
No seu preâmbulo afirma que: “Relatórios como este normalmente começam com uma estatística para dar destaque a um problema. As meninas e os meninos aos quais é dedicada esta edição do relatório Situação Mundial da Infância não são problemas”.
O Diretor executivo Anthony Lake, em seu lançamento, reafirma essa visão:"Quando se vê a deficiência antes de a criança, não é apenas errado para a criança, mas priva-se a sociedade de tudo o que criança tem para oferecer”. Ele, com a minha concordância enfatiza que: “Sua perda é a perda da sociedade, seu ganho é o ganho da sociedade."
Nas situações de vulneração, termo que criei para ir além da concepção de vulnerabilidade de pessoas com deficiência, de crianças submetidas, principalmente às violências sexuais, há um banalizar, naturalizar e invisibilizar, como biopolítica, as violações de seus direitos fundamentais.
As notícias que aparecem nas mídias, sempre de cunho sensacionalista ou escandalizador, não buscam o fundo do poço dessa questão já tornada uma rotina, um cotidiano. Nossa sociedade não contabiliza essas perdas...
E, como na música do Chico, tudo acaba sendo sempre igual. Porém a questão fundamental é exatamente essa diferença muito simples: as crianças não são miniaturas de pessoas adultas. Nem são nem anjos assexuados, muito menos demônios libidinosos.
O olhar e o respeito às suas diferenças nos conduz às dimensões plurais de seres em desenvolvimento psicológico, educacional e ético, muito diferenciado dos que os violentam. A igualdade, triste e real, é que a maioria vive, quase sempre, nas mesmas condições de precariedade e pobreza que seus agressores.
Bastaria uma pesquisa rápida sobre os termos bullying, assédio, abuso e violências sexuais associados aos termos “deficientes mentais”, como são, midiaticamente, chamadas as pessoas com deficiências intelectuais, que encontraremos um bom número de “ocorrências policiais”.
Por essa manutenção de um cotidiano violentar crianças é que, aqui e no resto do mundo, para além outras violências promovidas pela própria condição de situação familiar e econômica, é que a Unicef nos indica, dentro do seu Relatório algumas estatísticas.
O Relatório diz que crianças com deficiência têm probabilidade três ou quatro vezes mais alta de serem vítimas de violência. Segundo o mesmo: “As equipes de pesquisa da universidade John Moores, de Liverpool, e da organização mundial da saúde realizaram a primeira revisão sistemática de estudos existentes sobre violência contra crianças com deficiência, incluindo uma meta-análise”.
Já foi denunciado pela OMS que há alguns lugares do mundo, como na Índia, onde em algumas regiões *(Orisa), que quase que 70% das MENINAS com deficiências intelectuais já tinha sido submetidas a estupros e outros abusos sexuais. As notícias recentes deste tipo de violência confirmam as estatísticas brutais.
A Unicef, nesse Relatório, aponta a existência de uma ausência quase total de pesquisas nos países ditos emergentes ou em desenvolvimento. Por isso realizaram pela “ausência de estudos de alta qualidade relacionados a países de média e baixa renda, foram considerados 17 estudos realizados em países de alta renda”.
Portanto, segundo minhas pesquisas em matérias citadas ao fim do texto, foram feitas com aproximadamente 18.000 crianças de países como Estados Unidos, França, Espanha e Suécia. E, olhando para nosso mundo globalizado e em falências sócio-econômicas em alguns dos citados, que riscos poderíamos apontar para os muitos Brasis?
Nesse documento da Unicef as “estimativas de risco indicaram que crianças com deficiência estavam expostas a risco significativamente maior de sofrer violência do que seus pares sem deficiência: 3,7 vezes maior para medidas combinadas de violência, 3,6 vezes maior para violência física e 2,9 vezes maior para violência sexual. Crianças com deficiência mental ou intelectual apresentaram probabilidade 4,6 vezes mais alta de ser vítimas de violência sexual do que seus pares sem deficiência”.
Estas probabilidades são baseadas, como vimos, em estudos em ‘países de alta renda’. Como são, então, os riscos e os acontecimentos de violência contra crianças com deficiência nos meios socioeconômicos ainda na miserabilidade?
Afirma-nos o Unicef: “O resultado combinado é que as crianças com deficiência estão entre as pessoas mais marginalizadas no mundo. Crianças que vivem na pobreza estão entre aquelas com menor probabilidade de usufruir, por exemplo, dos benefícios da educação e de cuidados de saúde, mas para crianças que vivem na pobreza e têm uma deficiência é ainda menor a probabilidade de frequentar a escola ou centros de saúde no local onde vivem...”.
Multipliquemos ou exageraremos os números citados. O que vale, então, é a busca de motivos que possam gerar estas violações dos direitos humanos de criança com deficiência.
De tanto assistirmos, televisivamente, todas as formas cruentas de massacre, guerras, crimes, violências já estamos nos acostumando com a ideia, mesmo que dura, da cotidiana e banalizada agressão às pessoas com deficiência?
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, nosso Decreto 6949/2009, nos trará a possibilidade de enfrentar essa banalização e naturalização da discriminação opressora a que são submetidas essas crianças, que muitos ainda insistem em dizer que têm apenas “necessidades especiais”.
Já em 2006 nessa Convenção tínhamos a afirmação de que meninos e meninas devem ter seus direitos equiparados e protegidos. Nos seus princípios gerais afirma-se que: "h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade".
Por isso o Unicef e demais organismos internacionais de defesa da criança estão reconhecendo que: “crianças com deficiência têm o mesmo direito ao espectro completo de cuidados – desde imunização já no primeiro ano de vida a nutrição adequada e tratamento para doenças e traumas na infância, até informações e serviços confidenciais sobre sexo e saúde reprodutiva durante a adolescência e no início da vida adulta”.
Na busca de uma ampliação desses direitos há no Brasil alguns projetos que devem ser esclarecidos e difundidos, como o Projeto de lei 4665/12, da Deputada Erika Kokay, do PT/DF, em tramitação na Câmara, que altera o CÓDIGO PENAL para determinar que o consentimento e a ocorrência de relações sexuais anteriores não descaracterizam o crime e não abrandam a pena para o estupro em que a vítima seja menor de quatorze anos.
As violências e abusos cometidos contra crianças com deficiência devem ser enquadrados nesse projeto de lei. E sua caracterização pela vulnerabilidade deve ser motivo de uma penalização ainda mais rígida, segura e aplicável às diversas realidades brasileiras.
Enfim deveremos buscar uma ampla, visível, midiatizada e participativa discussão sobre os motivos, sociais, econômicos, familiares, psicossociológicos, sexuais, de gênero e etnia que influenciam no risco e maior ocorrência de violências contra crianças com deficiência no país.
O Relatório apresenta diversas explicações para as motivações dos abusos, e, considerando nossas realidades, diria que a mais ativa a serem investigadas são os processos de institucionalização a que alguns meninos, meninas, em faixas etárias diferentes, são submetidos.
Já aprendemos como a triste história dos isolamentos promovidos pela hospitalização em manicômios de pessoas com deficiências intelectuais. Apontam os dados históricos que lá estavam confinados, que em 1958 chegou a ter mais de 14 mil internados. Um pavilhão para menores foi inaugurado em 1922 e em 1957, do total de doentes 3.520 eram crianças.
Lamentável e coincidentemente os seus arquivos queimaram em um incêndio no ano de 2005. Haveria, com certeza, nesses documentos queimados o registro de como milhares de crianças mantidas no Juquery, como ‘pacientes psiquiátricos’ infanto-juvenis, foram os mais abusados física e sexualmente. Ainda hoje são os mais vulneráveis.
Nestes tempos de retorno à Casa Verde, como escrevi no último texto, há os que ainda buscam esse recuo e retrocesso histórico da reinstitucionalização e hospitalização de quaisquer desviantes. Entre eles podemos incluir muitos jovens adolescentes que têm alguma forma de deficiência. Outros passarão a tê-las.
Imaginemos, hoje, que temos um número significativo, uma população de, aproximadamente, mais de 02 (dois) milhões (segundo o IBGE), dentro dos 25 milhões de pessoas com deficiências. Quantos serão crianças e adolescentes, com deficiência, incluídos/excluídos na marginalização e na desfiliação social no Brasil?
Com alguma (in)certeza, muitos são ou serão meninos ou meninas em situação de rua, e o que fazer com essa população em crescimento? Hoje, com as pressões para uma maioridade antecipada e a punição também, quantas são as crianças e jovens que estarão nesse novo processo de institucionalização e ‘abrigamento’ provisório?
Já assistimos esse processo de solução final da exclusão dos mais “limitados” intelectual e socialmente, eles se tornarão, pela naturalização, mais vulneráveis e vulnerados ainda por suas limitações.
Tomemos, como exemplo, uma criança com paralisia cerebral ou com deficiência intelectual, que não consigam comunicar as violências ou abusos físicos ou psicológicos a que foram ou são submetidos, quem irá detectar, quem irá denunciar, quem irá reconhecer esta vulneração?
E, aí não bastarão apenas as leis e as Convenções. Serão as nossas atitudes ativas de defesa dos direitos humanos e busca de uma ativa inclusão social, com implicação total de todos os cidadãos e cidadãs, com e sem deficiência, no re-conhecimento destas crianças sob outro olhar, outro paradigma.
Veremos, como diz o Unicef, primeiro a Criança... E, transversalizados pelos sentidos éticos e bioéticos de outro modo de respeitar e cuidar, conseguir um olhar além do olhar sobre a proteção, sem paternalismos ou assistencialismos, das crianças, com e sem deficiência.
As políticas públicas que se tornem realmente estruturantes, protetivas e efetivas. Nossos representantes, nas três esferas de poder Estatal, que se tornem realmente comprometidos com a Infância.
Os cidadãos e cidadãs já comprometidos que se aliem, leiam e difundam o compromisso com a Educação Inclusiva e a Saúde Inclusiva propostas nesse documento. Nesse assunto não bastará curtir nas redes sociais. Precisamos, urgentemente, discutir e agir.
E as micropolíticas de ações, sejam individuais ou coletivas, transformaram a sua, a nossa e a de todos e todas, tarefa de transformar os direitos das crianças em nossos compromissos e deveres com seu Futuro.
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